O Princípio Anna Karenina e a Utopia da Felicidade

Existe uma frase que se tornou muito popular entre aqueles que nos dedicamos a estudar as famílias, em geral, e as empresárias em particular: “Todas as famílias felizes são semelhantes; cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” É a frase com que começa o romance Anna Karenina, publicado em 1877 pelo escritor russo Leon Tolstoi e que teve uma influência importante em áreas para além da literatura.

Por exemplo, mais de um século após a publicação desse romance, o biólogo americano Jared Diamond chamaria “princípio Anna Karenina” ao conjunto de quatro condições que as espécies animais devem cumprir, sem exceção, para serem domesticadas pelo homem: dieta, reprodução, carácter e velocidade de crescimento. Se apenas um deles falhar, não pode ser domado.

Diamond escolheu esse nome específico para nomear o seu princípio, porque, segundo ele, com as famílias felizes possa-se o mesmo: se uma das condições falhar (que são as mesmas para todos), deixarão de ser felizes. Assim, quando as famílias preenchem todos os requisitos, são felizes (é por isso que se assemelham umas às outras), mas aquelas que não o são, se falhar em qualquer uma delas ou nelas todas ao mesmo tempo, dependendo do que são, experimentarão um sentimento particular de “infelicidade” (é por isso que são diferentes, cada família é infeliz “à sua maneira”).

Outra abordagem semelhante, a de Salvador Minuchin [terapeuta familiar que desenvolveu a terapia familiar sistémica, que aborda problemas de uma família mapeando as relações entre os membros da família ou entre subconjuntos da família], define elementos nos quais podemos identificar ao mesmo tempo famílias universais (todas as famílias são semelhantes) e famílias particulares (todas as famílias são diferentes).

Na minha experiência, independentemente de serem empresárias, famílias perfeitas – que irão sempre e plenamente satisfazer todos os requisitos de felicidade – simplesmente não existem.

A definição que temos de família está geralmente associada a uma imagem idealizada graças aos produtos “hollywoodescos”, que nos inundam de modelos que não se adaptam na vida real a um sistema tão complexo. Compreender a realidade que nos rodeia e nos ajuda a definirmo-nos como indivíduos implica aceitar as nossas famílias de origem. E, em muitas ocasiões, não é algo fácil para nós.

O que eu acredito que existem são famílias com características funcionais nas suas relações que ajudam a desenvolver a felicidade do indivíduo e são percebidas de fora como um grupo feliz.

Mas não se engane: a felicidade será sempre uma decisão pessoal, não uma qualidade coletiva. E esse sentimento é uma condição que vai e vem nos nossos corações, assim como a qualidade das relações com os nossos entes queridos.

Ter uma família sem dor é uma fantasia. E isso é algo que, como agentes de mudança, acho que os consultores de empresas familiares precisam deixar claro para os nossos clientes em algum momento.

Querer viver na felicidade eterna é uma utopia. E o cliché em muitas famílias empresárias “bem-sucedidas” parece ser necessário transparecer, para o resto da sociedade, que os pais são perfeitos e os filhos não têm problemas.

O cativante filme de 1990, Stanno tutti bene (Estamos todos Bem) de Giuseppe Tornatore, estrelado por Marcelo Mastroianni, conta a história de um pai [um funcionário público aposentado que desejava reunir a família. Como os filhos cancelam a visita, ele decide viajar pelo país para encontrá-los e, durante o trajeto, vai descobrindo a realidade de cada um] que visita cada um dos membros da sua família, dispersa por toda a Itália, para finalmente trazer um relato geral da situação à sua amada esposa. Todos os segredos e situações embaraçosas que os filhos desejam esconder dos pais são ingenuamente disfarçados, deixando aos espetadores a incómoda responsabilidade de partilhar o segredo dos protagonistas, que desejam a todo o custo preservar a fachada honrosa da família. É um excelente exemplo que recomendo ver para entender como nos enganamos fingindo ser felizes perante os outros. Não deixe de assistir.

Gerar relacionamentos saudáveis é uma responsabilidade pessoal e um trabalho que todos os seres humanos devem fazer todos os dias para mantê-los funcionais. Querer ser feliz vai depender da nossa própria decisão de vida.

Ter familiares é uma corresponsabilidade, uma via de mão dupla: posso exigir, mas também devo esperar que o outro exija de mim. Qualquer outra forma de olhar para isso leva-nos ao que Carl Whitaker chamou de “delírio de fusão”.

[Carl Whitaker foi um psicólogo americano, falecido em 1995, que se dedicou aos problemas da família, apresentando, na tentativa de solucionar esses mesmos problemas e conflitos, um modelo simbólico-vivencial inserido numa perspetiva transgeracional. A sua teoria partia da noção hipotética de uma família saudável que teria as seguintes características: uma noção de unidade; um contacto com três gerações; delimitada em subsistemas parental e filial. Foi um dos precursores da terapia familiar sistémica ao considerar que o problema de uma pessoa não era indissociável do problema da sua família. É dele a afirmação de que “Um casamento é uma batalha entre duas famílias que lutam para se reproduzir”.].

No final do romance, Ana suicida-se quando vê que não consegue a relação que imaginava ter com o seu amado ou a ilusão de uma vida inatingível. Às vezes, a melhor recomendação que podemos dar aos membros dos nossos clientes de empresas familiares pode ser “seja honesto consigo mesmo e sejam honestos uns com os outros“. Essa é uma das chaves para a felicidade pessoal e uma vida familiar saudável e realista.

Artigo de Guillermo Salazar. Sócio-gerente da Exaudi Family Business Consulting®.

Publicado no perfil de linkedin em 2023/08/22, reproduzido com autorização do autor e tradução e complementos entre [ … ] de antónio nogueira da costa

 

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